Wednesday, 6 April 2022

O Tartufo russo e a Europa

De  Leonardo Costa:

O Tartufo russo e a Europa


Estou muito de acordo com o que Álvaro Vasconcelos diz na entrevista que deu ao Porto Canal sobre a guerra Rússia-Ucrânia (https://forum-demos.com/2022/03/21/alvaro-vasconcelos- entrevista-sobre-a-guerra-da-ucrania/). O tempo passou e, como diria Molière, o czarete Putin foi revelando a sua verdadeira natureza de Tartufo, o hipócrita (Herr Tartüffe, no filme do Murnau https://www.youtube.com/watch?v=CoXxIyF93Z4).

De início a personagem chegou a ser vista como uma esperança de desenvolvimento em liberdade para a Rússia, país que tinha vindo de um período muito difícil: o período da terapia de choque que, nos anos 1990s, deu origem à classe dos oligarcas russos. E também chegou a ser vista como uma esperança de paz para a Europa e para o Mundo. A própria existência de uma estação espacial internacional suportava esta ideia.

Claro que existiam contradições no Ocidente e gente a olhar para o lado e a salivar com o dinheiro dos oligarcas russos. Como é habitual, when money talks bullshit walks e vários políticos e homens de negócios ocidentais fizeram por não ver o que lhes podia estragar os negócios. Em nome de valores, monetários, sacrificaram outros valores como, por exemplo, os direitos humanos, também da população russa. No mundo do crime, é habitual o direito à propriedade prevalecer sobre o direito à vida.

Como é dito na entrevista, antes da guerra Rússia-Ucrânia, a NATO estava nas ruas da amargura (num estado de morte cerebral, dizia Macron). Trump tinha-lhe dado uma pancada bem forte. A NATO estava dividida. Até que ponto Trump era uma marionete nas mãos do Putin? Não sabemos. Que seria, nesta crise, se Trump fosse o presidente dos Estados Unidos da América (EUA)? Também não sabemos. Creio que as coisas seriam bem piores. A Ucrânia estaria mais isolada, na sua luta pela sobrevivência, e a lei do mais forte não só seria exercida, do modo que está a ser exercida, como poderia vir ter a concordância americana. Assim, a primeira coisa a falhar, em toda a estratégia do czarete ou Tartufo russo, foi a reeleição de Trump em 2020 nos EUA. É que em 2016, o czarete interferiu, com sucesso, na eleição presidencial americana, contribuindo para a vitória de Trump.

Creio que o objetivo último desta guerra é afirmar um mundo multipolar dominado por autocracias. E que desse mundo fariam parte, como potências autocráticas principais, não só a China e a Rússia como também os EUA. EUA que, apesar do percalço de 2020, ainda seencontram no campo das possibilidades. E passando os EUA para o lado das autocracias, sobraria a Europa como bloco principal do lado das democracias. E ainda pode vir a sobrar.

Quanto à Europa, antes da guerra Rússia-Ucrânia, o Tartufo russo já tinha mostrado ao que vinha. Andou a financiar os partidos de extrema direita europeus, por exemplo, a Le Pen em França e o Salvini em Itália. Também poderá ter ajudado a financiar a universidade do populismo que o Steve Bannon, ex-assessor do Trump, montou num mosteiro medieval em Itália, perto de Roma (com o apoio de Salvini). As relações com o atual poder politico na Hungria não parecem ser más. Ora, os impactos económicos desta guerra sobre a Europa têm capacidade de desestabilizar, do ponto de vista político, as democracias europeias, de alimentar este tipo de movimentos de extrema-direita populista e xenófoba.

Para já a solidariedade é grande. Todavia, não estou tão certo que o mesmo venha a suceder quando as coisas apertarem, do ponto de vista económico. E as coisas vão apertar, desse ponto de vista, com o preço do petróleo cá em cima, com os efeitos de ricochete das sanções, com os esforços necessários a fazer na defesa, com subidas nas taxas de juro para controlar a inflação (que se traduzem, em países como Portugal, num maior serviço da dívida). Mais necessário se vai tornar, nas democracias europeias, reforçar as políticas redistributivas. Mas será que as nossas elites europeias o vão querer ou permitir? A miopia, a este nível, costuma ser grande. Não o fazer colocará em risco as nossas democracias.

Do ponto de vista ambiental, num prazo mais longo, uma subida do preço da energia pode até contribuir para acelerar a transição energética da Europa para as energias renováveis. Todavia, num prazo mais imediato, podemos ter uma desaceleração ou mesmo uma inversão da transição energética. Já se fala em reativar centrais de carvão e centrais nucleares. Vamos ter menos recursos para investir na referida transição (pois teremos de investir em armamento). Face à redução dos esforços de mitigação das alterações climáticas, tudo isto vai significar mais calamidades devidas às mesmas e mais esforços a fazer em termos de adaptação (como por exemplo, a construção de diques por causa da subida das águas do mar).

Terá sido a NATO, num estado de morte cerebral, a principal causa da guerra que o czarete levou à Ucrânia? Terá sido o tratado de Versalhes a principal causa da guerra que o führer levou à Rússia? Mais do que a NATO, o FMI e a sua terapia de choque está na base da ascenção dos oligarcas e do czarete na Rússia. Todavia, nem a NATO nem o FMI são responsáveis pelas ações do referido czarete na Ucrânia. No que refere ao tratado de Versalhes, sim, ajudou à ascensão dos nazis e do führer na Alemanha. Todavia, o referido tratado não foi responsável pelas acções do führer na Rússia.

Leonardo Costa
Porto, 22 de março de 2022

 

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