O Grito da Terra e o nosso
As alterações climáticas e as constantes agressões
à Terra vieram mostrar-nos, ou expor desnudadamente, a sobranceria da primazia
do homem sobre todos os outros seres a ponto de os dominar, violentar e
maltratar a seu belo prazer. Não é mais possível fazermos de conta que nada se
está a passar e que depois da pandemia tudo poderá continuar como dantes. Os
mercados a crescerem, a voraz financeirização a criar cada vez mais
desequilíbrios e assimetrias, os recursos a serem delapidados e a Terra a ficar
doente e nós com ela.
Os objetivos do desenvolvimento sustentável foram
traçados, mas esta cartilha da sustentabilidade que já começou pelo menos
oficialmente com o relatório Brundtland em 1987 parece não estar a dar os seus
frutos e as mudanças tardam. Os diagnósticos estão feitos, mas de facto, existe
um enorme fosso entre as palavras e os atos.
Temos de ser capazes de deslocar a economia para
os seus limites, de modo a confrontar-se consigo mesma nesse território agreste
do limite. E aí, interrogar o oikos da economia no seu antropocentrismo
cientificista e desvitalizado, reduzido a universalidades abstratas uniformes e
vazias. Questionar esse oikos que tem por nomos uma racionalidade
que assenta numa hipótese fundamental cristalizada no princípio da maximização
dos agentes económicos, corroborada por outras hipóteses como a da informação
completa dos preços correntes e futuros, rendimentos e gostos. É preciso interrogar, sondar, articular e
desarticular, apontar para outro plano, num movimento de deslocação que (des)
estabiliza a ordem, ampliando o plano. E neste movimento de deslocação
é preciso pensar o oikos e o nomos da economia e o êthos que
o habita.
A deslocação deverá ser feita a partir da via
ontológica que é um caminho que se faz a partir do comum do ser, do qual
todos os seres participam, sem estratificação (géneros-espécies) nem
hierarquização, mas em mútua dependência. Esta via “constrói-se ao caminhar” e
conduz aos vários possíveis do ser em comum que encontra a sua força na
partilha, no nós, na criação conjunta do mundo. Esta experiência do ser
corresponde afetivamente e efetivamente à fruição do pleno exercício da energia
vital, do qual todos os seres participam, porque ao contrário daquilo que
soberbamente possamos pensar, os outros seres também agem.
Um mundo desvitalizado e mediatizado pela
racionalidade económica, consubstanciado no homo oeconomicus é um mundo
agrilhoado à abstração, a equivalências e representações. É um mundo de
realidades “objetivas” no qual a vida não habita, está fora de jogo e em que o
agir se reduz exclusivamente a um fazer, atrofiado, alienado, funcional,
burocrático e desvinculado da vida.
A via ontológica manifesta o ser em comum e a vida
de todos os seres, em que o ser humano passa a ser compreendido não a partir de
si mesmo, mas a partir da vida da qual todos os seres comungam. Intensificam-se
as diferenças, dá-se voz à singularidade e especificidade de cada um, através
de uma ação que não se reduz apenas a um fazer, mas se abisma na intensificação
da vida, não apenas a de sinal humano, mas a de todos os seres. Não há forma de
viver que não implique o outro, porque toda a vivência é convivência e é para
esse outro plano que queremos apontar.
A degradação da terra e o seu sofrimento, que
também é o nosso, são hoje uma evidência. Talvez este grito da terra nos instigue
na geração de novas formas de ação que levem à invenção de um mundo mais
equilibrado.
Conceição
Soares
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