Thursday 11 February 2021

 

                       Filantrocapitalismo ou um simulacro da bondade                                 

 

O livro mais recente da médica italiana, Nicoletta Dentico intitula-se, Ricos e Bons?: As tramas sombrias do filantrocapitalismo. Neste livro a autora que foi ex-directora dos Médicos Sem Fronteiras de Itália questiona a “caridade” dos bilionários, dos que pertencem à classe do 1% mais ricos do planeta. Ted Turner, George Soros, Mark Zuckerberg, Jeff Bezos, Warren Buffet e no topo Bill e Melinda Gates.

O filantrocapitalismo tal como a autora o define, “é aquela forma particular de filantropia que usa modelos, ferramentas, valores de mercado e da empresa para impulsionar, promover e também os impor na agenda social, na agenda dos direitos. Negócios e filantropia tornaram-se assim uma coisa só, e a filantropia torna-se a continuação do negócio por outros meios. No filantrocapitalismo, portanto, a fronteira entre lucro e sem fins lucrativos é anulada.” As palavras são duras e a critica dirige-se “a quem faz da filantropia uma forma de exercício hegemónico. Os que conseguiram apoderar-se até do último bastião deixado intocado pela lógica capitalista: o do mundo da solidariedade e da dádiva (…). A dádiva e a solidariedade fazem parte de todas as culturas. Em vez disso, essas pessoas conseguiram mudá-lo geneticamente, tornando-o uma extensão do seu poder económico e empresarial. Eu chamo-lhes ‘sacerdotes’ porque eles têm uma verdadeira ‘religião de mercado’. Quando intervêm, nunca olham para a origem do problema: encontram sempre uma solução técnica, biotecnológica, empresarial. A ideia é criar mercados para os pobres, o que é um desvio total das causas dos problemas. E, contudo, à sua volta há uma aura de veneração por parte de muitos governos, sobretudo do Norte do mundo.”

É fácil situar e datar historicamente “esta mutação genética” da filantropia, (amor/amizade pela felicidade e bem estar dos outros) para o filantrocapitalismo. Décadas de 1970 e 1980, o início e a expansão máxima da globalização. A primeira edição do Fórum de Davos foi em 1971. De 2000 a 2019, a perda progressiva da centralidade das organizações multilaterais. Um avanço cada vez maior do privado no público e o mito de que só o privado funciona bem e é eficiente. Esta mutação atinge o auge quando chega às Nações Unidas, o maior organismo público supranacional. No ano 2000, foi aprovado o Pacto Global das Nações Unidas, um pacto entre as Nações Unidas e as empresas. O acordo passa a ser “o cavalo de Tróia do sector privado, agora nas entranhas das instituições internacionais”. De facto, um ano depois nasceu o Fundo Global contra a Sida, a Tuberculose e a Malária, uma organização privada que responde à lógica do direito privado.

A sua grande crítica é dirigida ao bilionário Bill Gates. Nicoletta Dentico considera que é mesmo perigoso “porque está em toda a parte (…). Não existe área da vida humana em que ele não tenha decidido que tem receita para administrar: agricultura, finanças, alterações climáticas, saúde. O problema é: ele pode gastar muito dinheiro, mas não há um processo democrático em relação às suas decisões. Ele responde apenas perante si mesmo (…) Bill Gates e os outros são o resultado de um sistema económico e de uma falta de empenho, de uma transferência monstruosa de soberania política”. Esta crítica é suportada pela obra de duas investigadoras Alanna Shaikh e Laura Freschi na obra “Gates – A Benevolent Dictator for Public Health?, 2011 citadas no seu livro. Hoje é possível “ler um artigo sobre um projecto no sector da saúde financiado por Gates, escrito por alguém formado graças a um programa de jornalismo financiado por Gates, com base em dados coligidos e analisados por uma equipa científica financiada por Gates.”

Desde a década de 1980 a Organização Mundial de Saúde teve uma redução das contribuições dos Estados-membros e um aumento das ‘contribuições voluntárias’. A Fundação Bill e Melinda Gates é, em termos absolutos, a segunda maior financiadora depois dos Estados Unidos: 531 milhões de dólares em 2018-2019. E em quarto lugar está a Gavi Aliance, uma organização público-privada na qual a Fundação Gates tem 17% do fundo total. Nicoletta diz-nos que a sua crítica a Bill Gates é muito dura porque pensa que ele e outros são o resultado de uma falta de empenho, e de uma demissão dos poderes públicos em detrimento dos privados. Para a autora, “(…)  um mundo em que as realidades privadas governam os assuntos públicos é um mundo distópico.” 

Conceição Soares


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