Metamorfose das
subjetividades”, de Elsa Godart
Octave Larmagnac-Matheron escreveu recentemente uma recensão à obra de Elsa Godart Métamorphose des subjectivités (Hermann, 2020)
Será que devemos abandonar a noção filosófica de sujeito uma vez que ela é tão omnipresente quanto confusa? Será que os avanços da psicanálise, que trouxeram à luz os determinismos inconscientes das nossas ações, não tornam a noção de sujeito obsoleta? Para a filósofa e psicanalista Elsa Godart não devemos abandonar a noção de sujeito. Segundo Godart, o sujeito não é uma substância imutável e eterna, mas uma categoria em movimento e em evolução. Ele tem uma data de nascimento; e a sua contestação é basicamente apenas um momento da sua lenta metamorfose. Metamorfose que continua até hoje e que leva ao advento de um "sujeito virtual”, de um "sujeito aumentado", cuja existência desdobra-se agora no espaço de selfies e outros avatares digitais. Godart regressa a essa grande história da subjetividade com os três volumes de Métamorphose des subjectivités (Hermann, 2020), que resumem dezoito anos de pesquisa. Uma odisseia fascinante que, embora se cruze com muitas outras arqueologias sobre o assunto, lança uma nova luz ao concentrar-se em particular na questão da vontade. Apesar das múltiplas críticas dirigidas à noção de sujeito, ela continua relevante para Godart. Com a condição de não se procurar uma definição cristalizada. É uma noção que muda constantemente à medida que as sociedades mudam. Mais precisamente, metamorfoseia-se, no sentido literal: como a lagarta que, enroscada na crisálida, transforma-se em borboleta, o sujeito muda "de forma e não de substância". A filósofa identifica três etapas principais desta metamorfose, que correspondem aos três volumes da sua trilogia.
O sujeito da consciência
O sujeito nem sempre existiu. Não existia nem para os gregos nem para os romanos, por exemplo. A criação do sujeito implica um questionamento introspectivo, "um recolhimento 'interior' em si mesmo", uma preocupação com a "sinceridade" (tema caro a Godart, que já o abordou noutras obras) e, portanto, uma vontade de se conhecer e de falar a verdade sobre si mesmo.
O
nascimento da subjetividade é, portanto, inseparável de outra ideia, a da "vontade
livre " (que Descartes qualificou de infinita). O sujeito não
é dado desde a eternidade, ele surge através de um processo de “subjetivação” que
só se torna possível com a Modernidade (desaparecimento das sociedades
holísticas, emancipação da vontade humana, da vontade de Deus).
O
sujeito do inconsciente
Em meados do século XIX, Freud revela-nos a teoria do
inconsciente. O sujeito tinha por base a “vontade livre”; será
que poderá ‘desaparecer’
se a vontade for, de facto, alienada de "determinismos físicos"?
Segundo Godart, esse inconsciente tem a forma
de uma “vontade inconsciente”, de uma “vontade sem sujeito”,
a da pulsão, pautada por um único imperativo: a fruição. De Freud ao
nascimento da Web, a hipermodernidade, que promove a fruição imediata e o
desencadeamento desimpedido das forças primárias do inconsciente, oferece um
terreno fértil para essas análises “des subjetivantes”.
A realidade é, porém, mais complexa: o sujeito consciente
desenvolve-se, precisamente, pela repressão da vontade de fruição –
sublimando-a através da forma obscura do desejo. Por meio desse desejo, o
inconsciente entrelaça-se com a consciência e aguarda uma vontade de abraçá-lo
para se realizar. Isto nada tem que ver com a descarga directa da pulsão. A
teorização do determinismo psíquico transforma assim o desenvolvimento da nossa
subjetividade numa descoberta da verdade do nosso desejo. Questão de
sinceridade, novamente, mas sob uma nova forma.
O
sujeito virtual
A
partir das suas análises às selfie, Godart procura mostrar que o
uso generalizado da Web produziu uma transformação radical na forma como nos
constituímos como sujeitos. Com efeito, na era da “cibe
modernidade”, “a nossa relação com o virtual só passa pela
imagem”. "O meu avatar, sou eu?" Os laços virtuais que me
ligam aos outros são da mesma natureza que os laços reais? " Estas
são as questões que nos obrigam a repensar a sinceridade de outra
forma. Godart sugere que, talvez, o advento da "subjetividade
aumentada" incorporada no mundo digital, seja mais uma "hibridização"
do que uma simples metamorfose. Embora os outros dois volumes da
trilogia não deixem de ter interesse, o último é sem dúvida o mais original e
inovador.
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