Saturday, 16 May 2020


“Sociedade: um espaço geral de quarentena”



O filósofo alemão, de origem Coreana, Byung-Chul Han (1959) que anunciou o advento de uma sociedade transparente, sem adversário externo real, reconhece, numa entrevista recente que o Covid-19 marca, pelo contrário, o retorno da guerra e do inimigo, na forma de uma negatividade interior para todos. Apontou o risco da sociedade se tornar num espaço geral de quarentena, onde o teletrabalho se poderá tornar no equivalente liberal do “campo de trabalho” das sociedades totalitárias. Uma tese provocadora? Sim, mas que vale a pena ser discutida.
Será o pânico com a epidemia de Covid-19 excessivo? Como se pode explicar isso? Porque é que o mundo está a reagir de uma forma tão ansiosa a um vírus? Toda a gente fala sobre “guerra” e “inimigo invisível” que temos que derrotar. Estamos a lidar com o retorno do “inimigo”? A gripe espanhola surgiu durante a Primeira Guerra Mundial. Cada um foi então cercado pelo inimigo. Ninguém teria pensado em tornar a epidemia uma questão de guerra e inimiga. No entanto, hoje vivemos numa sociedade muito diferente.  
A guerra fria terminou há três décadas e o terrorismo islâmico até há pouco tempo era visto à distância. Há exactamente dez anos, num ensaio que escreveu, A Sociedade do Cansaço, (Relógio d’Água, 2014) Byung argumentava que o paradigma imunológico, baseado na negatividade do inimigo, já não era relevante para falar sobre as sociedades em que vivemos. A sociedade organizada segundo um modelo imunológico, como nos dias da Guerra Fria, é marcada por fronteiras, - que impedem a circulação de bens e capitais. A globalização desconstruiu essas barreiras imunológicas para deixar o caminho livre ao capital.
Segundo Byung, os perigos que nos ameaçam hoje não advêm da negatividade do inimigo, mas de um excesso de positividade - que é expresso como superactividade, superprodução e consumo excessivo. A negatividade do inimigo não corresponde às nossas sociedades permissivas e sem fronteiras. A opressão dos outros cede lugar à depressão; a exploração de outras pessoas é substituída pela auto-exploração e auto-optimização voluntária. Na sociedade da performance, o homem é o primeiro em guerra consigo mesmo.
No início da pandemia, as barreiras imunológicas foram mais uma vez erguidas e as fronteiras reforçadas. É o retorno da guerra. Não lideramos mais contra nós mesmos, mas contra um inimigo invisível do lado de fora. O pânico excessivo sobre o Covid-19 é uma reacção imune social abrangente contra o novo inimigo. É por isso que essa reacção é tão forte: vivemos, por muito tempo, numa sociedade sem inimigos, numa sociedade da positividade. A ameaça do vírus é sentida como um terror constante. 
Este pânico em relação ao vírus também revela que vivemos em sociedades de sobrevivência, nas quais todas as forças da vida são mobilizadas para um objectivo final: prolongar a vida. A preocupação com isso deu lugar à histeria da sobrevivência. Esta sociedade de sobrevivência é hostil ao prazer. A saúde é o valor fundamental. A histeria em torno da proibição de fumar mostra bem isso. A nossa reacção de pânico ao vírus revela essa base existencial do nosso mundo. Para impedir qualquer ameaça à nossa sobrevivência, estamos dispostos a sacrificar, voluntariamente, qualquer coisa que valorize a vida. Esta feroz batalha pela sobrevivência intensifica-se hoje por causa do vírus. Sem resistência, submetemo-nos ao estado de excepção. Sem nos questionarmos, aceitamos as restrições dos direitos fundamentais. Toda a sociedade é transformada num sistema de quarentena. Esta é a variante liberal do “campo de trabalho”, na qual a vida nua reina.
O vírus aumenta a solidão e a depressão. Os coreanos chamam a essa depressão causada pela quarentena da sociedade de “Corona Blue”. Mais do que antes, a vida após a epidemia dependerá da sobrevivência. Vamos assemelhar-nos ao vírus, esse ser “não morto” que se contenta em sobreviver e em reproduzir-se, sem realmente viver.
No que diz respeito aos mercados financeiros, Byuang diz-nos que as tensões extremas da economia mundial tornam o financiamento vulnerável. Apesar do constante crescimento dos índices do mercado de acções nos últimos anos, a política monetária aventureira dos bancos emissores criou um pânico contido, pronto a explodir. O vírus é, sem dúvida, apenas a gota de água que faz o copo transbordar. O medo que cria não produz pânico nos mercados financeiros: revela um pânico intrínseco. O acidente podia ter ocorrido sem um vírus. Além disso, o vírus talvez seja apenas um precursor de uma falha muito maior.
Byuang conclui dizendo que o choque pandémico ameaça impor, à escala mundial, uma biopolítica digital reforçada por um sistema de controle e vigilância dos nossos corpos, uma sociedade disciplinar na qual o nosso estado de saúde será vigiado permanentemente. Não é de excluir que nos sintamos livres dentro deste regime de vigilância biopolítica. Será que essas medidas poderão proteger a nossa saúde?  Será o Ocidente forçado pelo choque pandémico a renunciar aos seus princípios liberais? Será que a ameaça de um regime biopolítico de quarentena poderá restringir permanentemente as nossas liberdades? Será a China o futuro da Europa? 

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