Numa entrevista que deu
recentemente a uma revista francesa chama a atenção para o facto de que, à
medida que o Brasil se torna um dos principais focos da pandemia do Covid-19, a
pandemia faz de todos nós "índios", expropriados das nossas terras e
dos nossos corpos. Esta epidemia está ligada aos acontecimentos que
desencadearam o Antropoceno. Desflorestação, aumento do comércio
transcontinental, movimento dos seres humanos no mundo, propagação de
monoculturas (vegetais e animais), intensificação das relações entre as
espécies humanas e outras espécies animais, especialmente as selvagens... tudo
isto cria novas gerações de pandemias. A seu ver, a crise Covid-19 é uma
antecipação da grande catástrofe climática que nos espera, um atalho para o que
provavelmente acontecerá nas próximas décadas. Dá-nos um vislumbre dos efeitos
multiplicados do Antropoceno na migração, no reabastecimento e na vida
económica. O Antropoceno é um facto social e ecológico "total", como
diria Marcel Mauss. Produz eventos “totais”.
Historicamente, os índios
são “peritos” em epidemias, foram dizimados quando os colonizadores europeus
chegaram. Hoje, grupos indígenas isolados devem ser distinguidos daqueles que
têm contacto regular com a sociedade envolvente. Têm a mesma resistência imune
que os não nativos, são tão vulneráveis como nós à Covid-19. As populações
isoladas, por outro lado, são muito mais vulneráveis. Os números dizem-nos que,
dos 300 povos oficialmente reconhecidos como indígenas, 34, ou pouco mais de
10%, já estariam afetados. E acredita-se que existam 308 indígenas já
infetados, incluindo 80 mortos. Mas também aqui os números são provavelmente
subestimados. O estado do Amazonas é o terceiro estado mais afetado pela
pandemia, com apenas um décimo da população de São Paulo, o estado mais
afetado, sendo que os outros estados mais atingidos são o Rio e o Ceará, este
último no nordeste do país.
O
Amazonas está a ser devastado. E não apenas as cidades da Amazónia. A doença
também se espalha na floresta. Com a contenção, as ONG que protegiam estes
territórios deixaram de vir. Regiões inteiras estão a ser invadidas por
mineiros de ouro, por exploração clandestina e pelos missionários evangélicos,
a quem Bolsonaro deu carta branca para se infiltrar nas terras nativas. Segundo
Viveiros de Castro este presidente de pesadelo está a tentar aprovar decretos
para legalizar a apropriação ilegal de terras. Um ditado brasileiro é que o
dono das terras na Amazónia é quem a desfloresta. Até agora, tem sido uma
prática generalizada, mas ilegal, o que não significava muito em termos
práticos, mas mesmo assim... No entanto, o governo está em vias de legalizar um
processo de auto-declaração em que seria suficiente para os invasores
declararem-se proprietários de terras. O Brasil está a cair numa anomia, numa desintegração
social no sentido em que Émile Durkheim falava. Há muito tempo que dura uma
campanha de extermínio cultural contra os nativos. É como se o Covid-19 tivesse
aberto a perspetiva de um extermínio físico definitivo.
No passado, os índios do Brasil quase
desapareceram em resultado das epidemias que os colonizadores europeus lhes
tinham passado. Há alguma lição a aprender com esta experiência trágica do
passado? Nas Saudades do Brasil (Companhia das Letras, 1994),
Claude Lévi-Strauss afirmou que estávamos a caminho de nos tornarmos índios: “Expropriados
da nossa cultura, despojados dos valores por que estávamos apaixonados - a
pureza da água e do ar, as graças da natureza, a diversidade das espécies
animais e vegetais - todos nós somos agora índios, estamos a fazer connosco
mesmos o que fizemos com eles.” É mais verdade do que nunca. Estamos a
experienciar através da nossa própria ação, aquilo por que os índios passaram.
Não vamos perder, como eles, 90% da nossa população, mas os efeitos serão
profundos e duradouros.
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