Monday, 13 July 2020


METAFISICAS CANIBAIS: ELEMENTOS PARA UMA ANTROPOLIA POS-ESTRUTURAL ...

O antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro especialista das comunidades ameríndias da Amazónia, onde passou muito tempo, convida-nos, sob o lema do “perspectivismo”, a levar a sério o pensamento indígena, especialmente no que diz respeito à ligação e interacção com a natureza. Uma das suas obras mais emblemáticas é Metafísicas Canibais (Ubu Editora, 2018).

 Numa entrevista que deu recentemente a uma revista francesa chama a atenção para o facto de que, à medida que o Brasil se torna um dos principais focos da pandemia do Covid-19, a pandemia faz de todos nós "índios", expropriados das nossas terras e dos nossos corpos. Esta epidemia está ligada aos acontecimentos que desencadearam o Antropoceno. Desflorestação, aumento do comércio transcontinental, movimento dos seres humanos no mundo, propagação de monoculturas (vegetais e animais), intensificação das relações entre as espécies humanas e outras espécies animais, especialmente as selvagens... tudo isto cria novas gerações de pandemias. A seu ver, a crise Covid-19 é uma antecipação da grande catástrofe climática que nos espera, um atalho para o que provavelmente acontecerá nas próximas décadas. Dá-nos um vislumbre dos efeitos multiplicados do Antropoceno na migração, no reabastecimento e na vida económica. O Antropoceno é um facto social e ecológico "total", como diria Marcel Mauss. Produz eventos “totais”.
 Historicamente, os índios são “peritos” em epidemias, foram dizimados quando os colonizadores europeus chegaram. Hoje, grupos indígenas isolados devem ser distinguidos daqueles que têm contacto regular com a sociedade envolvente. Têm a mesma resistência imune que os não nativos, são tão vulneráveis como nós à Covid-19. As populações isoladas, por outro lado, são muito mais vulneráveis. Os números dizem-nos que, dos 300 povos oficialmente reconhecidos como indígenas, 34, ou pouco mais de 10%, já estariam afetados. E acredita-se que existam 308 indígenas já infetados, incluindo 80 mortos. Mas também aqui os números são provavelmente subestimados. O estado do Amazonas é o terceiro estado mais afetado pela pandemia, com apenas um décimo da população de São Paulo, o estado mais afetado, sendo que os outros estados mais atingidos são o Rio e o Ceará, este último no nordeste do país.
O Amazonas está a ser devastado. E não apenas as cidades da Amazónia. A doença também se espalha na floresta. Com a contenção, as ONG que protegiam estes territórios deixaram de vir. Regiões inteiras estão a ser invadidas por mineiros de ouro, por exploração clandestina e pelos missionários evangélicos, a quem Bolsonaro deu carta branca para se infiltrar nas terras nativas. Segundo Viveiros de Castro este presidente de pesadelo está a tentar aprovar decretos para legalizar a apropriação ilegal de terras. Um ditado brasileiro é que o dono das terras na Amazónia é quem a desfloresta. Até agora, tem sido uma prática generalizada, mas ilegal, o que não significava muito em termos práticos, mas mesmo assim... No entanto, o governo está em vias de legalizar um processo de auto-declaração em que seria suficiente para os invasores declararem-se proprietários de terras. O Brasil está a cair numa anomia, numa desintegração social no sentido em que Émile Durkheim falava. Há muito tempo que dura uma campanha de extermínio cultural contra os nativos. É como se o Covid-19 tivesse aberto a perspetiva de um extermínio físico definitivo.
No passado, os índios do Brasil quase desapareceram em resultado das epidemias que os colonizadores europeus lhes tinham passado. Há alguma lição a aprender com esta experiência trágica do passado?  Nas Saudades do Brasil (Companhia das Letras, 1994), Claude Lévi-Strauss afirmou que estávamos a caminho de nos tornarmos índios: “Expropriados da nossa cultura, despojados dos valores por que estávamos apaixonados - a pureza da água e do ar, as graças da natureza, a diversidade das espécies animais e vegetais - todos nós somos agora índios, estamos a fazer connosco mesmos o que fizemos com eles.” É mais verdade do que nunca. Estamos a experienciar através da nossa própria ação, aquilo por que os índios passaram. Não vamos perder, como eles, 90% da nossa população, mas os efeitos serão profundos e duradouros. 


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