Johannes Vermeer, A Leiteira,
(1660)
Confinamento – “Domingo da Vida”
E se aproveitássemos a oportunidade do confinamento que
estamos a viver para olhar para o nosso interior com um novo olhar? E até,
talvez, para encontrar alguma beleza nisso. É o que Hegel sugere, na sua obra Estética,
quando analisa alguns quadros da pintura holandesa do século XVII.
Já alguma vez parou para contemplar quadros pintados por
Johannes Vermeer, Jan Steen ou Hendrick Avercamp? G. W. F. Hegel fez isso e deu-nos
uma interpretação impressionante da pintura holandesa do século XVII na sua obra
Estética, publicada em 1835. O filósofo concebe a obra de arte como a
dimensão que permite que um povo tome consciência de si mesmo. O que nos diz esta
pintura, que não é, nem majestosa, nem imponente, mas representa cenas da vida
quotidiana? cenas de patinagem, paisagens marítimas, interiores ou
naturezas-mortas.
Para entender isso, Hegel remonta à história dos Países
Baixos: duplamente vitorioso sobre o mar e a opressão espanhola, os holandeses
não herdaram um país, mas construíram-no. A maior parte da Holanda está de facto
situada abaixo do nível do mar; foi preciso um trabalho imenso e a criação de sistemas
de drenagem. Os holandeses, seguidores da Reforma, conquistaram a sua
independência no final de uma guerra de oitenta anos contra a Espanha católica.
Os seus pintores, em vez de representarem cenas explícitas do sagrado preferiram
representar cenas da vida quotidiana.
A pintura é, portanto, uma oportunidade para os holandeses
imaginarem o seu país como fruto do trabalho árduo: contemplar as telas é o
produto do trabalho honesto de uma vida que admiram. No entanto, o quotidiano,
o contingente, também é investido de um sentido espiritual. A pintura holandesa
é uma prova para Hegel do espírito de um povo burguês orgulhoso e trabalhador.
O quotidiano oculta-se no ethos de um povo: “Essas cenas estão repletas de paixão
e de alegria ingénua que não é comum […] mas essa alegria jovial e essa
ingenuidade formam o sujeito e o pano de fundo fiel à imagem”, escreve Hegel. O
que o povo holandês representa para si é, acima de tudo, o seu próprio
entusiasmo pela vida, essa jovialidade que nasce da satisfação do trabalho
realizado. Na sua expressão, “É nesse abandono e sem preocupação que o momento
ideal emerge. É o domingo da vida que tudo iguala e afasta a ideia de mal”.
“Domingo da vida", é uma bela expressão que exprime o
espírito dessas pessoas! Essa metáfora teológica que se refere a Deus que, no
sétimo dia da criação, apresenta, de acordo com o livro de Gênesis, um olhar
satisfeito sobre a sua obra: "E Deus viu que tudo era bom”. Da mesma
forma, a pintura da Era de Ouro conclui o trabalho dos holandeses com um
sorriso de satisfação generosa. Este tempo de confinamento e contenção que
estamos a viver poderia ser para nós, pelo menos às vezes, um "domingo da
vida" - artístico, repousante e, por que não, jovial e alegre.
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