É com Aristóteles que encontramos pela primeira
vez, pelo menos no Ocidente, uma distinção fundamental entre economia e
crematística. Esta distinção surge em duas obras diferentes, uma, no livro I da
Política https://socserv2.socsci.mcmaster.ca/econ/ugcm/3ll3/aristotle/Politics.pdf) e outra no livro V da Ética a Nicómaco. https://socserv2.socsci.mcmaster.ca/econ/ugcm/3ll3/aristotle/Ethics.pdf
Em ambas as obras esta distinção surge
no contexto de uma reflexão sobre a moeda e nas duas obras a moeda é vista como um auxiliar da troca.
Para melhor entendermos esta distinção entre economia e crematística temos
primeiro de compreender o papel da moeda, o que a torna necessária, e qual a
sua legitima função.
A troca para Aristóteles é vista como um meio de procura de coisas úteis para a vida, os bens
de uso. Neste sentido a troca acontece no âmbito da economia doméstica. Contudo este não é
o único meio de obter coisas úteis. Podemos obtê-las igualmente através das colheitas (agricultura) ou da
captura (caça e pesca). Tal como a troca, as coisas úteis são modos de
aquisição de bens. Na medida em que estes bens são úteis para a comunidade doméstica, estes vários modos de
aquisição correspondem a técnicas
do âmbito da economia. No domínio da economia doméstica, a troca tem um papel acessório, na medida em que cada família procura prover às suas necessidades. É só quando a família se
divide em grupos separados que pode acontecer que a um dos grupos falte alguma
coisa que outro tenha em excesso e, nesse caso, a troca surge como uma
necessidade, de qualquer modo, a moeda, neste caso, não é necessária.
A moeda só se
torna necessária na economia da cidade (polis). Na família agrícola, todos os seus membros
participam nas tarefas comuns, mas na cidade cada um exerce o seu ofício. É esta comunidade de necessidades,
face à especialização de cada um no seu ofício,
que torna a troca absolutamente necessária. Na cidade, cada artesão precisa dos
outros para viver, o que significa que na cidade a troca não tem um carácter
acessório, mas
necessário e fundamental. Ora, é este
carácter fundamental e necessário que torna imprescindível o uso da moeda. A
finalidade da moeda, ou seja, a justificação do seu uso encontra-se na cidade. É, pois, na cidade que se é capaz de assegurar autossuficiência económica e simultaneamente garantir a
justiça das trocas. Contudo, para Aristóteles a moeda encontra a sua origem
em si própria, ou seja, não é no
desenvolvimento das trocas no interior da cidade, mas na economia doméstica.
Para Aristóteles, os povos bárbaros que não estavam organizados em
cidades, também faziam as
suas trocas, por exemplo, trigo por azeite. Mas a determinada altura estas
trocas alargavam-se a outros povos, chegando mesmo a fazerem-se transações de
importação e exportação, o que tornava a moeda necessária. Como nem todos os
objectos de troca eram facilmente transportáveis estabeleceu-se uma convenção
em que as partes dariam ou receberiam na troca de qualquer material um
pagamento (diríamos hoje) correspondente. Isto significa que a moeda nasce de
uma convenção internacional privada, exterior à instituição pública e independente das leis da cidade. Esta
instituição tem apenas um carácter comercial, não jurídico. A cunhagem que a
moeda tem é apenas uma
indicação, um sinal. Dito de outro modo, se a matéria utilizada como moeda é escolhida em razão do seu manuseamento,
da sua facilidade em circular e ser trocada por alguma coisa útil, ela não tem
uma utilidade própria,
ou seja, um valor intrínseco. É
apenas um meio ao serviço de uma finalidade fundamental, o provimento das
nossas necessidades.
Porém, a instituição da moeda, que surgiu da necessidade das trocas
exteriores, levou a uma transformação da natureza da própria troca. Antes do uso da moeda, a
troca fazia-se sob a forma de permuta e estava limitada às necessidades recíprocas das partes. Com
o uso da moeda, a troca ultrapassa os seus limites. Com a moeda abre-se uma
nova possibilidade de troca que se efectua mediante a compra e venda e a partir
daí é possível exercer as
trocas não apenas para prover às
necessidades, mas por si próprias
em vista do lucro. É a partir desta possibilidade real que consiste na
libertação da moeda do seu fim natural que é possível acumulá-la sem
qualquer tipo de limite.
Esta nova forma de troca que consiste
na compra e na venda, é aquilo
a que comummente se chama comércio.
É evidente que na sua origem o comércio
também se exercia mediante a
permuta, mas rapidamente evoluiu para a forma como o conhecemos hoje. É, pois, com o desenvolvimento da técnica comercial que se produz uma
grande transformação na economia que corresponde sobretudo, a uma alteração da
noção de riqueza. As riquezas eram, antes de mais, coisas úteis que nos serviam
para alguma coisa, correspondiam essencialmente a objectos de uso. A arte de
adquirir riqueza e de usufruir dela fazia parte da economia doméstica. A esta administração e gestão de bens chamava-se crematística. A crematística diz respeito à aquisição de riquezas, mas não se identifica com os diversos modos
de aquisição das subsistências,
nem com as técnicas de
produção. Havia uma distinção clara, entre a produção de coisas úteis, e a arte
de as utilizar, de as escolher e de as dispor para as necessidades da família,
ou seja, transformá-las em verdadeiras riquezas, ou bens de uso.
Esta análise permite distinguir dois
níveis na arte de adquirir. Um dos níveis está relacionado com a captura, a
recolha ou a produção cada vez em maior número, a acumulação ilimitada. O outro nível diz respeito à aquisição dos meios subordinada
aos fins da vida doméstica ou
da vida política. É neste último nível que a arte de adquirir
atinge a sua finalidade e exerce a sua função normal dentro da economia,
constituindo a parte que se ocupa da administração dos bens e que a justo
título merece o nome de crematística. Contudo, este não é o sentido comum dado a este termo. Ao
mesmo tempo em que se altera a noção de riqueza, mediante o desenvolvimento do
comércio, que se traduz pela
emancipação da troca, opera-se um desvio em relação ao seu sentido comum. A
partir desta possibilidade, a troca pode ser considerada como um modo de
aquisição, comparável à produção, às colheitas ou
à caça. De tal modo, que tal
como temos duas formas de aquisição, uma incontrolável e selvagem, a outra
normal, natural, regulada pelas verdadeiras necessidades, temos igualmente duas
formas de troca. Uma, contida dentro dos seus limites naturais, sem necessidade
de moeda, dentro da economia doméstica.
A outra desregulada, própria
das sociedades evoluídas, tendo por condição a instituição da moeda, que torna
possível o desenvolvimento do comércio
e a procura metódica
do lucro.
É esta arte de enriquecer mediante
operações fundadas sobre o uso da moeda, operações financeiras, que é designada correntemente sob o
nome de crematística. Deste modo, podemos dizer
que há uma crematística natural, normal, que faz parte da economia, da
admnistração doméstica e política, e uma
crematística sem lei, que usurpou o nome à primeira, e que não é mais
uma boa administração dos bens, mas uma simples técnica de negócios. Esta última concepção de crematística é o resultado de um desvio do papel da troca, em que se modifica ou
altera a estima, o juízo sobre o valor das coisas, ou seja, ao valor de uso
acrescenta-se, e finalmente substitui-se, o seu valor de troca.
Aristóteles foi igualmente dos
primeiros autores a pensar o duplo uso que os objectos podem ter. O seu uso próprio, por exemplo, os
sapatos são feitos para os calçarmos, mas também podem servir para troca. No entanto, neste último caso, ainda
podemos fazer uma distinção. Se o sapato for cedido para alguém que precise dele, o seu uso não está longe do uso próprio, outra coisa bem
diferente é, quando o
vendemos a alguém que por sua
vez o revende para obter lucro. Aquilo que torna possível o lucro é este alargamento sucessivo dos
mercados que suscitou a invenção da moeda e que, por conseguinte, permite o
curso variável de um mesmo objecto, de uma mercadoria, segundo o tempo e o
lugar. É sobre a experiência
destas variações que assentam as técnicas
comerciais, que embora consigam desenvolver ao máximo as suas possibilidades e
os meios para atingir os fins, são isentas de
normas, de verdadeira finalidade racional, no sentido aristotélico. Este é o caso da crematística no sentido corrente do termo. Ela assenta
sobre um desenvolvimento desregulado da troca, não tendo outro fim que não seja
o lucro e não conhecendo outro valor que não seja aquele que se exprime em
função do mercado e que é medido
pela moeda, tida como a principal forma de riqueza. É claro para Aristóteles que a finalidade
da economia nada tem que ver com a acumulação de capitais e de mercadorias.
Isto faz-nos lembrar o dom, aparentemente maravilhoso que os deuses concederam
ao Rei Midas, que tinha o poder de transformar tudo aquilo em que tocava em
ouro e por isso, não
usufruía de nada e morria de fome.
Walter
Crane, (1845-1915) Midas with the
Pitcher
A verdadeira riqueza consistia na
produção a partir daquilo que a natureza dava e na aquisição necessária à manutenção de um fundo, a riqueza teria um limite subordinada às necessidades naturais da
família. No livro I da Política, Aristóteles considera que a moeda é um factor de perversão da economia, uma vez que torna possível o
comércio, a procura metódica do lucro dando
origem a uma técnica falaciosa
que pretende fazer da troca uma fonte de riqueza. A crematística, que encontra
a sua primeira aplicação no enriquecimento comercial, converte-se rapidamente
na arte da finança, em que as operações não se efectuam sobre os próprios bens, mas sobre estes bens tornados mercadorias, sobre
os títulos que os representam, sobre o dinheiro transformado em elemento
primordial e termo final da troca.
Marinus Van
Reymerswale (1490-1546) The Money Changers
Transvertido deste modo, o comércio não é mais uma troca real de bens ao serviço
dos consumidores, mas uma pura especulação, tendo como único objectivo o lucro.
Aristóteles
considera que se aumentamos a riqueza não por via daquilo que a natureza nos
dá, mas pela via crematística isso só pode acontecer mediante a exploração de alguém. Conhecemos hoje todas as perversões
económicas que
Aristóteles
denuncia na sua obra. Como todas as instituições que são criação da vontade humana,
têm o valor de uso que lhe
dermos. O pântano financeiro em que entramos é bem sinal desta vertigem crematística sem medida e sem controlo, só sairemos dele se
tivermos a ousadia de S. Paulo quando foi capaz de ver, na I Carta aos
Coríntios (6:12) que “tudo
nos é permitido, mas nem tudo
nos convém” em nome de um bem
maior, comum.
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