“Os homens são substituídos por abstracções, entidades
económicas, lucros e dinheiro. Os homens são tratados
matematicamente, estatisticamente, contados como animais, sendo tidos em menor
apreço do que estes. Os homens afastados da Verdade da Vida mergulham nos
enganos, nos prodígios em que a vida é negada, ridicularizada, troçada, simulada –
ausente
(…) Michel Henry, (1998) EU SOU A
VERDADE: Para uma filosofia do cristianismo, Ed. Veja, Lisboa, p.277.
Será o dinheiro uma
realidade económica? É possível pensarmos filosoficamente o dinheiro? As
respostas a estas questões são-nos dadas pelo filósofo
francês Michel Henry
Num
artigo intitulado “Pensar filosoficamente o dinheiro” Michel Henry procura, a partir daquilo
a que chama uma fenomenologia da vida, reflectir sobre estas questões. Esta
reflexão é feita num permanente diálogo com a obra de Marx. Para Henry a esfera
económica só pode ser pensada a partir de um ponto de vista da vida subjectiva,
pois sem esta referência a
economia não tem qualquer tipo de inteligibilidade. Para que se possa
compreender esta afirmação teremos de ir à génese daquilo
que é a esfera económica. O específico da economia é permitir que o valor de uso se possa
transformar em valor de troca. O
valor de uso, é o conjunto das riquezas produzidas, que estão ao serviço da
vida, quer dizer, em princípio, para satisfação das nossas necessidades. É neste
sentido que Michel Henry diz que o valor de
uso de um produto é aquele valor que tem uma relação fundamental com a
vida e com a afectividade. O valor de troca, é a razão pela qual uma
determinada quantidade de mercadoria será trocada como outra quantidade de
mercadoria, este aspecto quantitativo manifesta-se sob a forma de dinheiro.
A questão fundamental que se coloca, é a de saber em que proporções
podem ser trocados valores de uso produzidos pelo trabalho individual? A
solução encontrada para responder a esta questão, foi a de medir o trabalho,
quer dizer, objectivá-lo. Para ultrapassar o abismo das subjectividades,
procedeu-se a uma subdivisão decisiva, a substituição do trabalho vivo, por
alguma coisa de objectivo que será tida doravante por equivalente deste
trabalho vivo e que será passível
de ser apreendido objectivamente. Esta equivalência do trabalho real, “escondida na noite da sua subjectividade
abissal”e invisível, surge na sua representação como uma entidade
visível, que nomeamos como “trabalho”,
e até podemos qualificar como
“penoso”. Trabalho objectivo
situado no tempo do mundo e dos relógios e em relação ao qual é possível medir a
sua duração (ex: oito horas de trabalho). Ao procedermos a esta representação,
ou subversão, o trabalho vivo foi esvaziado da sua substância fenomenológica subjectiva que o tornava único e
singular. Nesta representação torna-se irreal, geral, social, abstacto,
quantificável e qualificável. É este trabalho objectivamente quantificável que
projectado sobre o produto real do trabalho, o valor de uso, cria o valor de
troca. O valor de troca é a representação do trabalho no
produto.
Porém, o problema
que se levanta é o da
objectivação do trabalho. Ao fazê-lo
já estamos a desvirtuá-lo, a fazer uma representação daquilo que ele é, a quantifica-lo. Contudo, para
Henry, tal como para Marx,
autor no qual se inspira, o trabalho real não pode ser representado, sob pena
de se desvirtuar, porque ele é sempre
individual, subjectivo e imanente. Ele é sempre manifestação
de um esforço vivo e individual, subjectivo que tem que ver com as
características próprias
de quem o desempenha e nesse sentido é sempre singular. Variável
de individuo para individuo, invisível, inquantificável, não sendo possível ser medido, correspondendo à força, à energia e às
capacidades próprias
de cada um. É por isso, que segundo Marx, atribuir um mesmo salário ou um mesmo
bem social a actividades individuais essencialmente diferentes é por si só, uma injustiça. Querer trabalho para todos é já, de certa forma, homogeneizá-lo É por isso, que como Marx bem viu, “este direito igual, é um direito desigual para um trabalho
desigual”.
Voltando à questão inicial, sobre o tema do dinheiro constatamos que este
último, pensado a partir desta fenomenologia da vida é caracterizado por uma dupla irrealidade.
Primeiro, o trabalho subjectivo real, foi representado uma primeira vez no
trabalho objectivado dando lugar a um valor de troca, que por sua vez, está
representado sob uma forma independente de produto, (dinheiro) separado do corpo
material da mercadoria. Esta representação pura do trabalho, é o dinheiro. O dinheiro corresponde deste
modo, à forma pura do valor
de troca. Neste sentido, o dinheiro é a forma abstracta do valor é representação de
uma representação. E deste modo, a distância em relação à subjectividade viva é dupla. É esta irrealidade de princípio
que nos cria como que uma ilusão óptica, a de que o dinheiro é uma realidade autónoma.
A ideia de que o dinheiro pode criar por si mesmo valor resulta do esquecimento
voluntário ou não da sua génese
essencial, o trabalho vivo. Marx na sua filosofia pensou esta não autonomia do
dinheiro sob uma tríplice forma.
A sua incapacidade de crescer por si próprio, a não ser pela
exploração humana, a sua incapacidade de se conservar, a não ser pela
intervenção constante do trabalho vivo, e por último a sua incapacidade de
existir por si próprio,
a não ser pela representação do trabalho vivo. A visão lapidar de Marx é a de que ainda que possa parecer
que o dinheiro faz alguma coisa, de facto por si só, nada pode fazer. Aquilo que de
facto acontece e que nos dá a
ilusão de que o dinheiro “faz
alguma coisa” é a conversão
do dinheiro em força de vida, ele compra trabalho ou dito de uma forma mais
crua, ele só pode “comprar alguém”.
Numa
altura em que nas economias capitalistas, a “produção” de dinheiro ultrapassa a produção de mercadorias e que ao
trabalho vivo se substitui cada vez processos de produção automatizados, as
bolhas financeiras têm tendência para rebentar cada vez mais
uma vez que repousam sob uma autonomia ilusória do dinheiro, fantasmática. Daqui resulta, que o fundamento
do valor do dinheiro tende a diminuir no processo de produção. Como nos diz
Michel Henry, “Se só o trabalho vivo cria valor, então o dinheiro, terá tendência a desaparecer ao mesmo tempo
que o trabalho (…) “p.
176-77. Ou dito de outro modo, “como
fundar uma produção tendencialmente crescente de valor de uso sobre um valor de
troca em vias de desaparecimento? Estaremos nós a assistir ao declínio do dinheiro?
Não sabemos, uma coisa é certa,
ele permanece e com ele o mistério
do qual brota. Ao pensarmos filosoficamente o dinheiro não pretendemos resolver
esse mistério, apenas
reconhecê-lo, uma vez que ele
reenvia para a vida.
A
um nível mais geral podemos dizer que esta representação ou equivalência, que se opera na esfera económica entre a ordem da
representação e a ordem da vida subjectiva e que se caracteriza por um certo
cientismo acabou por se estender, a quase todos os domínios da cultura
contemporânea. Vivemos num mundo em que a história parece fazer-se cada vez mais
mediante o afastamento da vida real das pessoas, e as instituições que nos
governam parecem funcionar por si próprias, entidades económicas e financeiras. Há todo um universo económico perfeitamente homogéneo, e também financeiro que se constituiu através de equivalências da vida real das pessoas e nos leva
a uma espécie de abismo. São os cegos de Bruegel
que se encaminham para o precipício, porque não compreendem ou não querem compreender a
vitalidade essencial que funda o universo económico e sem o qual a economia não
passa de uma violenta ilusão.
Contudo, vemos
finalmente, aquilo para o qual Michel Henry nos aponta, “que todo o universo económico, constituindo o “conteúdo” deste mundo, provém da vida e a ela reenvia.” (Henry, 1998, p.247)
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