Wednesday 15 June 2016

Será o dinheiro uma realidade económica?

Os homens são substituídos por abstracções, entidades económicas, lucros e dinheiro. Os homens são tratados matematicamente, estatisticamente, contados como animais, sendo tidos em menor apreço do que estes. Os homens afastados da Verdade da Vida mergulham nos enganos, nos prodígios em que a vida é negada, ridicularizada, troçada, simulada ausente (…) Michel Henry, (1998) EU SOU A VERDADE: Para uma filosofia do cristianismo, Ed. Veja, Lisboa, p.277.

Será o dinheiro uma realidade económica? É possível pensarmos filosoficamente o dinheiro? As respostas a estas questões são-nos dadas pelo filósofo francês Michel Henry                                 




Num artigo intitulado Pensar filosoficamente o dinheiro Michel Henry procura, a partir daquilo a que chama uma fenomenologia da vida, reflectir sobre estas questões. Esta reflexão é feita num permanente diálogo com a obra de Marx. Para Henry a esfera económica só pode ser pensada a partir de um ponto de vista da vida subjectiva, pois sem esta referência a economia não tem qualquer tipo de inteligibilidade. Para que se possa compreender esta afirmação teremos de ir à génese daquilo que é a esfera económica. O específico da economia é permitir que o valor de uso se possa transformar em valor de troca. O valor de uso, é o conjunto das riquezas produzidas, que estão ao serviço da vida, quer dizer, em princípio, para satisfação das nossas necessidades. É neste sentido que  Michel Henry diz que o valor de uso de um produto é aquele valor que tem uma relação fundamental com a vida e com a afectividade. O valor de troca, é a razão pela qual uma determinada quantidade de mercadoria será trocada como outra quantidade de mercadoria, este aspecto quantitativo manifesta-se sob a forma de dinheiro.
A questão fundamental que se coloca, é a de saber em que proporções podem ser trocados valores de uso produzidos pelo trabalho individual? A solução encontrada para responder a esta questão, foi a de medir o trabalho, quer dizer, objectivá-lo. Para ultrapassar o abismo das subjectividades, procedeu-se a uma subdivisão decisiva, a substituição do trabalho vivo, por alguma coisa de objectivo que será tida doravante por equivalente deste trabalho vivo e que será passível de ser apreendido objectivamente. Esta equivalência do trabalho real, “escondida na noite da sua subjectividade abissal”e invisível,  surge na sua representação como uma entidade visível, que nomeamos como trabalho”, e até podemos qualificar como penoso”. Trabalho objectivo situado no tempo do mundo e dos relógios e em relação ao qual é possível medir a sua duração (ex: oito horas de trabalho). Ao procedermos a esta representação, ou subversão, o trabalho vivo foi esvaziado da sua substância fenomenológica subjectiva que o tornava único e singular. Nesta representação torna-se irreal, geral, social, abstacto, quantificável e qualificável. É este trabalho objectivamente quantificável que projectado sobre o produto real do trabalho, o valor de uso, cria o valor de troca. O valor de troca é a representação do trabalho no produto. 
Porém, o problema que se levanta é o da objectivação do trabalho. Ao fazê-lo já estamos a desvirtuá-lo, a fazer uma representação daquilo que ele é, a quantifica-lo. Contudo, para Henry, tal como para Marx, autor no qual se inspira, o trabalho real não pode ser representado, sob pena de se desvirtuar, porque ele é sempre individual, subjectivo e imanente. Ele é sempre manifestação de um esforço vivo e individual, subjectivo que tem que ver com as características próprias de quem o desempenha e nesse sentido é sempre singular. Variável de individuo para individuo, invisível, inquantificável, não sendo possível ser medido, correspondendo à força, à energia e às capacidades próprias de cada um. É por isso, que segundo Marx, atribuir um mesmo salário ou um mesmo bem social a actividades individuais essencialmente diferentes é por si só, uma injustiça. Querer trabalho para todos é , de certa forma, homogeneizá-lo É por isso, que como Marx bem viu, este direito igual, é um direito desigual para um trabalho desigual”.
Voltando à questão inicial, sobre o tema do dinheiro constatamos que este último, pensado a partir desta fenomenologia da vida é caracterizado por uma dupla irrealidade. Primeiro, o trabalho subjectivo real, foi representado uma primeira vez no trabalho objectivado dando lugar a um valor de troca, que por sua vez, está representado sob uma forma independente de produto, (dinheiro) separado do corpo material da mercadoria. Esta representação pura do trabalho, é o dinheiro. O dinheiro corresponde deste modo, à forma pura do valor de troca. Neste sentido, o dinheiro é a forma abstracta do valor é representação de uma representação. E deste modo, a distância em relação à subjectividade viva é dupla. É esta irrealidade de princípio que nos cria como que uma ilusão óptica, a de que o dinheiro é uma realidade autónoma. A ideia de que o dinheiro pode criar por si mesmo valor resulta do esquecimento voluntário ou não da sua génese essencial, o trabalho vivo. Marx na sua filosofia pensou esta não autonomia do dinheiro sob uma tríplice forma. 


A sua incapacidade de crescer por si próprio, a não ser pela exploração humana, a sua incapacidade de se conservar, a não ser pela intervenção constante do trabalho vivo, e por último a sua incapacidade de existir por si próprio, a não ser pela representação do trabalho vivo. A visão lapidar de Marx é a de que ainda que possa parecer que o dinheiro faz alguma coisa, de facto por si só, nada pode fazer. Aquilo que de facto acontece e que nos dá a ilusão de que o dinheiro faz alguma coisa” é a conversão do dinheiro em força de vida, ele compra trabalho ou dito de uma forma mais crua, ele só pode comprar alguém”.
Numa altura em que nas economias capitalistas, a produção” de dinheiro ultrapassa a produção de mercadorias e que ao trabalho vivo se substitui cada vez processos de produção automatizados, as bolhas financeiras têm tendência para rebentar cada vez mais uma vez que repousam sob uma autonomia ilusória do dinheiro, fantasmática. Daqui resulta, que o fundamento do valor do dinheiro tende a diminuir no processo de produção. Como nos diz Michel Henry, Se só o trabalho vivo cria valor, então o dinheiro, terá tendência a desaparecer ao mesmo tempo que o trabalho (…) p. 176-77. Ou dito de outro modo, como fundar uma produção tendencialmente crescente de valor de uso sobre um valor de troca em vias de desaparecimento? Estaremos nós a assistir ao declínio do dinheiro? Não sabemos, uma coisa é certa, ele permanece e com ele o mistério do qual brota. Ao pensarmos filosoficamente o dinheiro não pretendemos resolver esse mistério, apenas reconhecê-lo, uma vez que ele reenvia para a vida.
A um nível mais geral podemos dizer que esta representação ou equivalência, que se opera na esfera económica entre a ordem da representação e a ordem da vida subjectiva e que se caracteriza por um certo cientismo acabou por se estender, a quase todos os domínios da cultura contemporânea. Vivemos num mundo em que a história parece fazer-se cada vez mais mediante o afastamento da vida real das pessoas, e as instituições que nos governam parecem funcionar por si próprias, entidades económicas e financeiras. Há todo um universo económico perfeitamente homogéneo, e também financeiro que se constituiu através de equivalências da vida real das pessoas e nos leva a uma espécie de abismo. São os cegos de Bruegel que se encaminham para o precipício, porque não compreendem ou não querem compreender a vitalidade essencial que funda o universo económico e sem o qual a economia não passa de uma violenta ilusão.


Contudo, vemos finalmente, aquilo para o qual Michel Henry nos aponta, que todo o universo económico, constituindo o conteúdo” deste mundo, provém da vida e a ela reenvia.” (Henry, 1998, p.247)

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